segunda-feira, 20 de junho de 2005

Tão perto. Tão longe


As pequenas vagas transmitiam uma sensação de paz que lhe acalmava o espírito. Mas o problema mantinha-se. Olhava sem focar para o oceano a perder de vista e pensava no ridículo da sua actual situação. Estava a 2 metros da água, esgotado e sedento. Sabia que a água era potável, mas servia-lhe de tanto como um oceano de cianeto. Como é que a sua vida tinha ido parar àquele preciso ponto no tempo e no espaço, de tal maneira desfavorável que provavelmente seria o fim da linha?
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Tinha conseguido uma passagem para um planeta que servia de entreposto comercial onde esperava arranjar um emprego qualquer. Podia dizer-se que tinha sido a sua última cartada, já que a tinha ganho num jogo de poker. Aliás, tinha sido duplamente a sua última cartada, visto que tinha apostado os seus últimos créditos. Se tivesse perdido estaria em maus lençóis.



As coisas não lhe tinham corrido muito bem no planeta X-2145. Tinha ido para lá depois de terminar o seu curso, para fazer um estágio conseguido através da universidade. O salário acordado não era grande coisa mas tinha perspectivas de evoluir na carreira rapidamente e começar a ganhar um bom salário no prazo de um ano, um ano e meio. Ou pelo menos assim lho tinham prometido. Na realidade as coisas tinham-se passado de modo menos favorável que o que tinha idealizado. O trabalho como químico estagiário limitava-se a umas quantas tarefas simples que em nada lhe aumentavam a experiência. Ao fim de três meses e de numerosos pedidos ao seu superior hierárquico, tinha chegado à conclusão de que ninguém estava muito preocupado com a sua carreira e que no fim do estágio era garantido que o punham na rua. Começou a aproveitar as horas vagas para procurar alternativas de emprego. Aquele jogo de poker tinha sido providencial. Quase tão providencial quanto aquele poker de ases. Isto porque tinha ficado provado que não tinha o mínimo jeito para fazer bluff. No primeiro jogo tinha tentado e isso tinha-lhe custado metade das sua economias. No segundo manteve-se em jogo apenas o tempo suficiente para perder um quarto da sua fortuna inicial. Mas ao terceiro, quando se preparava para desistir e voltar para o seu quarto, calhou-lhe uma mão excelente. Quando pediu duas cartas conseguiu converter duas cartas sem valor em dois ases. Infelizmente, da mesma forma como todos lhe tinham visto na cara o bluff, também o seu sorriso de triunfo foi por demais evidente. Ninguém cobriu a sua aposta. Conseguiu apenas reaver uns trocos e ficar com aquela passagem. No fim do mês recebeu o pagamento da empresa e não voltou lá. Se ninguém mostrava respeito pelo seu trabalho e pelas suas capacidades, não havia de ser ele a preocupar-se com a empresa. Ainda pensou levar uma embalagem dos químicos com que trabalhava, que venderia facilmente no mercado negro e lhe renderia uma boa maquia. Mas a empresa fazia revistas aleatórias aos empregados e depois daquele poker de ases, tentar sair com os químicos seria declaradamente abusar da sorte. É claro que quando saiu da empresa pela última vez ninguém olhou para ele sequer duas vezes.



Passados três dias tinha embarcado num pequeno cargueiro manhoso, que fazia serviço de transporte de longo curso de cargas de terceira categoria. A viagem seria de cinco meses, pelo que tinha a opção de a fazer em animação suspensa. Para a empresa era mais vantajoso manter os passageiros em animação suspensa, uma vez que passavam a ser tão inanimados como a restante carga e davam tanto trabalho como esta. Ou seja, nenhum. Mas os maiores benefícios traduziam-se em créditos. Um passageiro em animação suspensa praticamente não consumia ar, energia, alimentos e água. Tudo isto representava poupanças de combustível. Mais lucro para a viagem, portanto.



Por essa razão, mal os passageiros punham o pé a bordo, o comandante atacava logo tentando convencê-los a aceitar fazer a viagem em animação suspensa. Os argumentos eram invariavelmente um maior conforto, maior segurança e principalmente, o facto de estando em animação suspensa, a sua esperança média de vida ser prolongada na razão directa de dez para nove. Ou seja, por cada dez meses que estivesse em animação suspensa, a sua esperança média de vida seria prolongada por mais nove meses. Para quê desperdiçar dez meses de vida com uma viagem enfadonha quando podia fazer a viagem como se apenas um mês se tivesse passado?



Quando esta argumentação não funcionava, o comandante oferecia-lhes dinheiro. Normalmente os passageiros aceitavam. Afinal de contas, quem fazia viagens em cargueiros não tinha normalmente uma conta muito recheada. Se tivesse certamente optaria por uma nave de transporte mais rápida, mais cómoda, com mais mordomias e actividades de lazer. E muito mais cara, claro.



E Miguel, que nem a passagem tinha pago, aceitou imediatamente e sem pensar duas vezes a primeira oferta do comandante. Nos seus momentos finais de consciência fez uma nota mental - "nunca mais aceitar a primeira proposta que me fizerem. Regatear um pouco primeiro".



Há já uns minutos que a imagem da tampa da câmara de animação suspensa ganhava forma diante dos seus olhos. Era uma imagem que se formava diante dele sem que qualquer pensamento lhe viesse à mente. Ao fim de um tempo, quando a imagem se se começava a parecer com alguma coisa, começaram também a surgir-lhe os primeiros pensamentos. Por exemplo, por que carga de água é que a porcaria da tampa estava sempre a mudar de cor? E que raio de chinfrim era aquele que lhe entrava pelos ouvidos a dentro? Tentou mexer-se mas os seus músculos pareciam não responder. Finalmente a imagem da tampa ficou clara e o chinfrim ganhou contornos de palavras.
- "Perigo de descompressão. A tripulação deve vestir fatos de protecção com a máxima urgência."
Esta mensagem repetia-se em ciclo. A tampa abriu-se lentamente enquanto Miguel matutava sobre o que ouvira. Conseguia perceber as palavras mas ainda não tinha um raciocínio muito coerente, pelo que o seu sentido lhe escapava. Apesar do tom sensual da voz feminina do computador central não o transmitir, ele sentia uma certa urgência em perceber o significado da mensagem. Felizmente que esta se repetia quase que de forma contínua. Entre cada repetição parecia haver apenas o tempo suficiente para que o computador bebesse um pouco de água para clarear a voz. Ao fim da décima quinta vez, o significado da mensagem caiu-lhe em cima como um cometa. A mudança de cor da tampa por cima de si ganhou também significado. Era o flash vermelho da iluminação de emergência. Algo de muito grave tinha acontecido e tinha de se levantar o mais depressa possível. Lutou para ganhar controlo sobre os seus músculos mas sentia-se muito fraco. Normalmente seria apoiado pelo médico de bordo no fim do sono de animação suspensa, mas não parecia estar ninguém por perto para o apoiar. E o maldito computador que não se calava. Era um pouco enervante ouvir estas mensagens de emergência que eram ditas sem o mínimo sentido de urgência. Um pouco como quando se recebe o agente regulador de trânsito nos entrega uma multa por excesso de velocidade com um sorriso amável e nos deseja a continuação de um bom dia.



Aos poucos e poucos conseguiu recuperar o controlo dos movimentos e levantou-se da câmara. Uma porta na parede estava aberta e lá dentro encontrava-se um fato de protecção. À sua volta parecia estar tudo tal como quando tinha entrado em animação suspensa. Nenhum sinal de acidente, nada fora do lugar. Arrastou-se até ao fato de protecção e vestiu-o lentamente, ou tão rápido quanto conseguiu. Deslocou-se então para a porta da sala mas esta tinha sido trancada pelo sistema de controlo atmosférico. Destravou a porta utilizando o manípulo de emergência e abriu-a a custo. Mal se abriu uma fresta sentiu o ar da sala ser sugado violentamente, arrastando consigo uma série de objectos soltos. Agarrou-se com firmeza para não ser arrastado para a fresta. Sentiu-se invadido por uma corrente de adrenalina. O seu coração batia descontroladamente. A situação era bem pior do que ele imaginava. Quando a pressão se estabilizou abriu o resto da porta e saiu para o corredor. Não havia vivalma.



Caminhou até a ponte de comando. A porta da antecâmara estava fechada. Do outro lado havia atmosfera. Utilizou o manípulo de emergência para abrir a porta e depois de a passar voltou a fechá-la. A porta para a ponte de comando também estava fechada e do outro lado também havia atmosfera. Pressionou o comando para reestabelecer a atmosfera na antecâmara e quando a luz verde se acendeu, pressionou o botão para abertura normal da porta da ponte e esta abriu-se imediatamente. Tirou o capacete e desligou o fornecimento de ar. Por precaução activou o sistema de restabelecimento das reservas de ar.



A ponte de comando também estava vazia. Não conseguia ver danos aparentes, mas todas as consolas continham indicadores de perigo. Dirigiu-se à consola do comandante e accionou o sistema de comunicação para toda a nave
- Olá? Existe mais alguém a bordo? - fez uma pausa na esperança de que alguém respondesse, mas nada. Tentou novamente.
- Daqui fala o passageiro que seguia em animação suspensa. Está aí alguém que me possa explicar o que se passa?
Nada. Silêncio total. Sentiu um medo imenso, uma solidão enorme. Era a única pessoa na nave. Ou pelo menos a única viva. Mas ao mesmo tempo apossou-se dele uma enorme excitação. Estava na ponte de comando de uma nave, para todos os efeitos à sua disposição e sob o seu comando. A nave tinha sido abandonada pelo seu comandante e tripulação e ele próprio tinha sido abandonado a uma morte solitária no espaço. Portanto podia fazer o que quisesse com a nave que ninguém podia alguma vez acusá-lo fosse do que fosse. Nem sabia por onde começar. O que é que poderia fazer primeiro? O miúdo grande que ainda tinha dentro dele lembrou-se logo que podia lançar um míssil contra alguma coisa. Algumas naves de carga tinham sistemas de armamento simples, que serviam como desmotivador para piratas mal armados. Procurou a consola do sistema de armas mas ao fim de um tempo chegou à conclusão de que esta nave em particular era tão inofensiva quanto uma vaca no pasto. Ou seja, o máximo que conseguia fazer era abalroar outra nave, o que era uma táctica muito pouco usada no espaço. Por razões óbvias.



Sentiu-se um pouco desiludido, mas nada estava perdido. Resolveu fazer um reconhecimento das diversas consolas para perceber o que poderia fazer com a nave. À esquerda da cadeira do comandante estava a consola de comunicações. Logo a seguir, no sentido dos ponteiros do relógio, estava a consola de navegação. Ia começar a olhar para esta quando um ronco primitivo e assustador se fez ouvir em toda a ponte de comando. Dois meses sem comer davam uma fome de leão. Ficou indeciso entre continuar a sua exploração da ponte e ir buscar qualquer coisa para comer à cantina. "Que diabos", pensou, "até agora não vi nada de realmente urgente". Voltou a ligar o fornecimento de ar, que entretanto já estava a 100%, colocou o capacete, saiu para a antecâmara da ponte de comando e a porta fechou-se atrás de si. A sua ideia era preparar uma refeição rápida. Era um sistema muito prático. Vinham numa embalagem de vácuo e bastava injectar um pouco de água na embalagem e metê-la no forno rápido. Deixar esperar dois minutos, agitar e deitar para uma tigela. Infelizmente todo o equipamento da cozinha estava sem energia. Possivelmente algum mecanismo disparado pela situação de emergência. Teve de se contentar com umas quantas barras energéticas.



Mal a pressão atmosférica foi reposta na antecâmara, abriu uma das embalagens. Sentou-se na consola de comunicações. Estava a ser emitido um sinal de SOS em permanência. O SOS indicava o nome da nave, a empresa a que pertencia, dizia que a nave tinha perdido controlo direccional, as coordenadas actuais, a trajectória que levava e a hora de cada emissão. Esta trajectória era corrigida em tempo real pelo sistema de navegação, uma vez que podia haver alteração devido a forças gravitacionais. Também era afirmado que toda a tripulação tinha sido evacuada e as coordenadas, rota e hora do lançamento das cápsulas de emergência. "Toda a tripulação excepto o otário do passageiro", pensou Miguel. No entanto havia algo que não batia certo. Por que carga de água havia uma tripulação de abandonar uma nave que mantinha as condições de habitabilidade, ainda que tivesse perdido o controlo direccional? Mudou para a consola de controlo de sistemas e pediu um diagnóstico do estado da nave. Parte da nave parecia ter sido arrancada por um grande impacto, mas os sistemas vitais estavam todos intactos e funcionais para as restantes zonas da nave. Ou seja, era perfeitamente possível aguardar na nave por apoio da nave que se encontrasse mais perto. Mesmo que esse apoio levasse meses a chegar, os sistemas de reciclagem de ar e água eram capazes de manter a tripulação sobrevivente durante o tempo necessário. Tinha de haver outra explicação. Activou a consola de navegação e fez uma pesquisa para determinar se tinha havido alguma alteração da rota devido ao impacto. Ora aí estava, de facto na altura do impacto a nave sofrera um considerável desvio. Pediu uma análise da nova rota da nave. A única razão que lhe ocorria para o abandono da nave seria esta estar em rota de colisão com algo. No entanto o relatório não mostrava nenhum obstáculo dentro dos limites de alcance dosa sensores de curto ou longo alcance. Aliás, a nave parecia até dirigir-se para uma zona bastante desimpedida... anormalmente desimpedida... completa e absolutamente desimpedida. A zona do espaço para a qual a nave se dirigia parecia ser completamente vazia. Como um buraco negro! Agora as peças começavam a encaixar-se. Esta zona do espaço não estava muito bem cartografada e uma nave desta categoria não tinha a capacidade de determinar o horizonte de evento do buraco negro. Sem a possibilidade de avaliar o ponto de não retorno, a única medida lógica seria abandonar a nave o mais depressa possível. E a nave já apresentava uma apreciável aceleração, apesar de ter a propulsão desligada.



Rapidamente pediu ao sistema de navegação para localizar os planetas mais perto. Dois planetas apenas. Um deles por demais inospitaleiro mas o outro parecia ter condições para uma aterragem de emergência. Transmitiu as coordenadas do segundo planeta para a cápsula de salvamento restante e voltou a colocar o capacete. Dirigiu-se para a cantina e reuniu todos os mantimentos que conseguiu. Depois foi ao armário onde tinha os seus pertences e juntou rapidamente o que pôde, com especial atenção para o seu computador de bolso, onde mantinha o seu diário, os seus livros, fotografias e todo o entretenimento necessário para se manter ocupado durante as cerca de duas semanas que levaria a viagem para o planeta seleccionado.



A cápsula foi lançada com a potência máxima e manobrou de maneira a perder o mínimo de impulso inicial. A propulsão principal manteve-se activa durante todo o tempo possível para contrariar a força atractiva do buraco negro que já se fazia sentir nesta zona. Quando o combustível da propulsão principal chegou aos 95%, esta desligou-se e foi substituída pela propulsão iónica que iria funcionar em contínuo durante a maior parte da viagem.



A aterragem tinha corrido mais ou menos bem, mas a cápsula perdera a estanquecidade. A afirmação mais simpática que se podia fazer em relação ao planeta era que era o melhor que se tinha conseguido arranjar. Tinha água potável, não era particularmente sísmico ou com uma actividade vulcânica demasiado activa. Tinha era aquele problemazito de ter uma atmosfera venenosa. É claro que podia ser venenosa e corrosiva, por isso e vistas bem as coisas nem se podia queixar muito. A cápsula ligou automaticamente o sinal de socorro, mas Miguel sabia bem que ninguém o viria buscar. Viu ao longe um oceano e dirigiu-se para lá. Já que ia morrer, ao menos que acabasse os seus dias com uma vista bonita.



Sentado a olhar para o mar pensou nas suas alternativas. Não tinha hipótese de voltar a encher o tanque de ar. Com a nave sem estanquecidade a produção de mais ar era impossível. Para além disso era impossível comer ou beber porque não podia tirar o capacete. A única coisa que podia recarregar era as baterias do fato, mas de que é que isso lhe servia? O seu único consolo era que o ar se acabaria muito antes de ter fome ou sede realmente graves. Se bem que um grande golo de água neste momento lhe saberia muito bem. Na realidade tinha apenas mais meia-hora de ar. Perdeu dez minutos a ajeitar a areia de maneira a que se pudesse encostar confortavelmente a ver as pequenas vagas. Os seus últimos vinte minutos passou-os a tentar lembrar-se dos melhores episódios da sua vida. Aos poucos foi perdendo a consciência, até que a falta de oxigénio acabou por o matar.


2 comentários:

Mocho Falante disse...

Ao navegar na Blogoesfera encotrei este Blog muito bem disposto e com posts muito engraçados. Vai fazer parte das minhas "bisbilhotices" diárias

convido a visitar o lugar do mocho em www.mochofalante.blogspot.com

Parabens

Personalidade Bloguinho Portuga disse...

Obrigado pelo elogio.

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