domingo, 24 de novembro de 2019

Fim da linha para um filho da puta

Três horas. Estou há três horas à espera. No escuro, protegido pela sombra do beco em frente ao restaurante onde está o meu alvo. Um filho da puta como não há muitos... ou pronto, muitos haverá, mas este é o meu. O meu filho da puta, que desta noite não passa. Tem até à sobremesa para fazer a sua última filha-da-putice. Até ao café. Ou ao digestivo. Foda-se, caralho, o que interessa é que de hoje não passa. Estou completamente focado na porta do restaurante. De vez em quando levo a mão ao cinto onde está a minha companheira. Não nos conhecemos há muito tempo, a nossa relação começou há apenas duas semanas quando por um acaso me cruzei com o filho da puta. Reconheci-o instantaneamente, mas ele deve ser daquelas pessoas más a fixar caras. Vi-lhe um fugaz momento de dúvida nos olhos, aquele esforço de memória que se faz quando achamos que conhecemos uma pessoa, mas não conseguimos recordar de onde. A sorte sorriu-me porque consegui controlar a minha expressão, olhei em frente e não me desmascarei. A mulher com quem ele caminhava disse algo e ele perdeu o fio do pensamento. O cérebro escolheu o caminho mais fácil e abandonou o esforço de perscrutar a memória. Assim que percorri uma distância segura dei a volta e comecei a segui-lo. Sem uma preocupação no mundo, o filho da puta caminhava ao lado da mulher. Por vezes punha-lhe a mão nas costas e dirigia-a. A conversa fluía com despreocupação. Mas como é que um filho da puta de um assassino deste calibre pode circular num país com leis com este à vontade? Como se não devesse nada a ninguém, como se não tivesse um mandato internacional de captura, como se não tivesse assassinado dezenas de pessoas em meia-dúzia de países africanos. Mas estes vermes têm um sexto sentido e comecei a notar-lhe algum desconforto. Como se pressentisse que o estavam a seguir. A conversa perdeu fluidez, de vez em quando olhava para trás. Aproveitava os reflexos para tentar descortinar uma cara repetida. Deixei-me ficar para trás, aumentei a distância e a preocupação dissipou-se. Segui-o até a um edifício de escritórios. Entrei para um café e esperei. Esperei umas horas, não sei quantas, até que ele voltou a sair pela mesma porta. Um carro parou em frente e ele entrou. Não ia conseguir segui-lo, mas há mais que uma maneira de esfolar um gato. O carro seguiu o seu caminho e eu fui ter com um merdas que conheço há uns anos e que vende armas ilegais. E foi aí que iniciei uma bela amizade com uma Beretta M9. Já tinha tido relações anteriores, mas eu não sou ciumento. Nem tão pouco preciso de uma bomba novinha e sem experiência. Eu e a Marta, que já teve outros nomes mas para mim ficou Marta, só precisamos de nos conhecermos bem. De passarmos algum tempo de qualidade. Conheço um gajo que é fanático por armas e construiu uma carreira de tiro completamente insonorizada por baixo da vivenda dele. Os vizinhos não fazem ideia, claro. Ele adora o cheiro a pólvora, por isso até faz questão de que lhe utilizem a carreira de tiro. O tipo não é muito fiável, mas não tinha muito mais opções. Não me podia ir inscrever no clube de tiro com uma arma ilegal e precisava mesmo de conhecer melhor a minha Marta. Perceber as manias dela. Do que é que ela gosta mais. Falei-lhe da nossa missão e entendemo-nos muito bem. Sinto-me como se fôssemos amantes de décadas. Consigo fazer dela tudo o quero, conheço-a por dentro e por fora e sei que quando chegar a hora não me vai falhar. Este beco... tem vantagens e desvantagens. Por um lado, permite-me focar na porta do restaurante. Como tenho de estar um pouco recuado para ficar na sombra, o ângulo fecha muito e praticamente só vejo a porta e a montra do restaurante. Por outro lado, não vejo mais nada e a ausência de estímulos faz-me divagar. Por vezes perco o foco e perco-me em memórias. Apesar de tudo podia ser pior. A rua ainda tem bastante movimento. É uma área de vida noturna e o facto de ser quinta feira não reduz a afluência. Está sempre a passar gente para baixo e para cima. Estudantes, a maior parte já muito bêbados dado o adiantado da hora. Turistas. Putos em aceleras das empresas de transporte de refeições. Casais. Putas. Polícias. Volta e meia passa um carro do INEM a assinalar marcha de urgência. E aqui no beco não deixa de haver movimento. Ratazanas. Já tive de dar um pontapé numa. Baratas. Gatos vadios. É uma animação. E eu espero. E imagino os últimos segundos de vida do filho da puta. Vai sair do restaurante. Com a despreocupação de quem acha que é imune. Que não lhe podem tocar porque fez um acordo com as autoridades em troca de qualquer coisa. Vai sair acompanhado com uma gaja qualquer. Já deve ir de pau feito a pensar na foda que comprou com uma refeição de luxo num restaurante da moda e que já devia estar fechado, mas que para um cliente especial faz uma atenção especial. Ele vai sair a rir-se, com a mão na cintura da boazona com que entrou. Uma miúda de vinte cinco anos ou coisa assim. Vestido justo mas com classe. Corpo atlético. Estes filhos da puta só arranjam material da melhor qualidade. Eles saem, ambos já bem bebidos, mas ela a cambalear e ele a ampará-la. Ele já só vai pensar em despi-la e comê-la. Não vai estar com os sentidos alerta, não vai sondar a rua à procura de ameaças. Eu só tenho de me dirigir a ele, assobiar, olhá-lo nos olhos e dizer uma palavra. Uma única palavra que lhe vai gelar o sangue. Uma única palavra que lhe vai recuperar a minha cara instantaneamente das memórias que ele já tinha enterrado debaixo das memórias de pilhas de cadáveres. Memórias essas que por sua vez já foram enterradas por muitas outras mais recentes e mais agradáveis. Porque estes filhos da puta têm sempre umas vidas muito preenchidas. E quando o significado da minha cara for claro para ele já eu vou ter a Marta na mão. Com uma recta perfeita entre o coração dele, a mira da Marta e o meu olho direito. Ele vai largar a miúda e levar a mão à arma que leva no coldre da axila. Um coldre lindo de pele feito por medida para a Glock mais cara que encontrou. Mas a mão não vai chegar à Glock porque quando ele iniciar o movimento já eu disparei. Vai sentir o impacto da bala antes de ouvir a explosão do disparo. Vou-lhe acertar no coração porque não quero que morra logo. Foi também por isso que não escolhi balas de ponta oca. Não é para morrer logo. Tem de dar tempo de eu chegar a ele. De o olhar nos olhos para poder ver a expressão dele enquanto interioriza o facto de que está a morrer. De que acabou a sua sorte. De que está finalmente a pagar pelas pilhas de cadáveres que deixou pelo caminho. Imagino isto e ensaio os movimentos. A aproximação. O assobio. O olhar. A mira. O disparo. E finalmente a porta abre-se. Passa das duas da manhã. Tal como eu previ saem os dois. Ela ri-se, cambaleia. Ele ampara-a. Eu começo a avançar, ajusto o capuz para me tapar a cara dos lados. Só ele me vai conseguir ver a cara. Avanço em direcção à luz, tiro a Marta do cinto e engatilho-a. Imediatamente antes de entrar no cone de luz um carro interpõe-se entre nós e trava de repente. Gritam em russo. A cara do filho da puta muda. Vejo-lhe o pânico nos olhos. A miúda nem tem tempo para se aperceber. Uma arma automática dispara e caiem os dois ao chão cravados de balas. Deixo de os ver por detrás do carro que arranca a alta velocidade. Os dois corpos estão no chão e escorre sangue no alcatrão. O vestido que era branco e liso, agora tem buracos de bala por onde escorrem fios grossos de sangue. Deste ângulo não consigo ver a cara do filho da puta e tenho de fugir porque já se aproximam transeuntes. Foda-se! Não acredito que estive a preparar-me durante duas semanas e mais três horas ao frio e uns cabrões de uns russos roubam-me o momento. Azar do caralho!

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