O debate que se seguiu ao crime hediondo que ocorreu em Paris veio demonstrar que quando colocadas perante as Grandes Questões da Civilização, muitas pessoas deixam-se enredar num argumentário obtuso que resulta na desculpabilização dos criminosos e na tentativa de racionalização do irracional. A escolha é bastante clara: queremos manter os nossos ideais que incluem a Liberdade de Expressão, Igualdade entre os Sexos, a impossibilidade de perseguir por motivos de credo, raça e orientação sexual, o primado da Lei e a laicidade do Estado, entre outros, ou voltar aos tempos do Absolutismo em que a arbitrariedade e a injustiça reinavam? Quem é que julga que colocando limitações à Liberdade de Expressão para evitar ofender este ou aquele grupo não vai ter de ceder mais e mais nos outros princípios? Como foi discutido ontem no
Governo Sombra, e seguramente noutros
fora, é praticamente impossível dizer uma frase completa sem ofender pelo menos uma pessoa neste planeta. O tema da Liberdade de Expressão e dos seus limites já foi debatido em todas as suas vertentes até à exaustão e parece-me que todas as conclusões já foram tiradas previamente. A Liberdade de Expressão, e o seu corolário, a Liberdade de Imprensa, não podem ser limitadas porque as consequências dessas limitações para a Democracia não são aceitáveis. No tipo de sociedade em que vivemos, quem se sente ofendido tem o direito a procurar compensação em tribunal. O tribunal decidirá se houve ou não abuso da Liberdade de Expressão. Não se podem colocar limites à Liberdade de Expressão, seja por razões religiosas, políticas ou outras. Este é um princípio basilar de que não estou disposto a abdicar. Se for necessário estou disposto a pegar em armas para o defender, ainda que espero que o nosso Estado seja suficientemente robusto para que isso não seja necessário. Como diz o ponto 1 do artigo 37 da Constituição Portuguesa, "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento
pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito
de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem
discriminações".
Como exemplo do que está em causa não poderíamos arranjar melhor nem mais paradigmático do que a proibição de desenhar Maomé. Não quero entrar na discussão de se de facto Maomé pode ou não ser desenhado, o que parece que nem para os próprios muçulmanos
é tão líquido como isso. A questão, bem mais fundamental e bem mais profunda, é a seguinte: podem membros de uma religião impor ao membros de outras e até aos agnósticos, os seus princípios e proibições? Penso que a resposta será clara para todos: NÃO! Se fosse possível aos muçulmanos impor à consciência e actos de crentes de outras religiões e a não crentes a proibição de algo tão básico como o de fazer um desenho, porquê parar por aí? Onde é que colocaríamos a linha vermelha do que não estaríamos dispostos a deixar de fazer mesmo que isso ofendesse os muçulmanos? E já agora, e todas as outras religiões? Não terão os hindus o direito de se sentirem ofendidos por nós comermos carne de um animal sagrado, ou seja, a vaca? Que outras proibições mirabolantes se seguiriam para evitar ofender as delicadas sensibilidades dos seguidores das centenas de religiões que são hoje seguidas neste planeta? Vamos deixar de cantar e dançar porque os muçulmanos fanáticos acham que isso não é permitido? Vamos proibir o acesso das mulheres à educação porque os talibãs se sentem ofendidos? Vamos apedrejar as mulheres que forem violadas pelo crime de adultério? Vamos excomungar quem comer bivalves, o que o Leviticus 11:10 considera uma abominação? Etc.
Parece-me que a resposta deve ser clara. Aqui, em França e noutros países as sociedades evoluíram para se tornarem mais abertas, tolerantes, igualitárias e "tendencialmente" laicas. Como tal não pode haver cedências naqueles que são os princípios básicos da Civilização Ocidental. Desenhar Maomé pode ser visto como uma ofensa? Lamentamos muito, mas cá no burgo isso não é proibido. Quem se sentir ofendido é livre de apresentar os seus argumentos em tribunal e procurar a devida compensação.
Finalmente, a sátira, não só não deve ser proibida, como não deve sequer ser limitada. A sátira tem um papel essencial para a Democracia. Na suas formas escrita, oral e desenhada serve para pôr a nu as incoerências e hipocrisias da Sociedade e dos seus actores principais e funciona como uma das formas de escrutínio da Democracia e das suas instituições. Portanto, não, não podem haver limites à Liberdade de Expressão e sim, pode-se gozar com as crenças e as práticas religiosas, políticas e sexuais de todos, sejam eles muçulmanos ou de outra religião qualquer.