Uma Potência para Todas Governar
2073. A Terra é dominada por um único bloco, a República Popular da China. O único poder que conseguiu manter alguma capacidade de preservação do conhecimento científico e evolução tecnológica. Os restantes grandes poderes do planeta tinham entrado havia algumas décadas numa deriva de dormência cerebral resultante do sucessivo sucesso de lideranças populistas fascizantes. O longo percurso desta tendência política deu origem a um planeta em conflito permanente e que em muitos países levou a variadas implementações da Revolução Cultural Chinesa do séc. XX, com a consequente perseguição e chacina de professores, intelectuais e cientistas. O conhecimento foi-se perdendo como resultado do máximo desígnio educativo destes regimes: quatro anos de escolaridade. Apenas o suficiente para aprender a ler, escrever, somar, subtrair e o suficiente da história revisionista para sustentar o regime autoritário do seu país.
Mas este caminho para a generalização da ignorância que passou por cima das antigas democracias liberais como um cilindro compressor, nem começou por acaso, nem ganhou balanço sem que alguém para isso trabalhasse. Tratou-se de um caminho onde a Rússia foi um mestre que rapidamente foi ultrapassado pelo seu discípulo mais a Leste. A Rússia conseguiu manter todo o seu aparelho de guerra assimétrica no topo da cadeia alimentar durante todo o reinado de Putin. No entanto, temendo o caos que se seguiria à morte do ditador, a China utilizou a última década de vida de Putin para construir um mecanismo holístico de manipulação das democracias com três objectivos em mente: em primeiro lugar reduzir a pressão destes países relativamente aos abusos dos direitos humanos na China, em segundo lugar manter o encrostamento da China nas cadeias de distribuição da economia mundial e, finalmente, a lenta conversão das democracias liberais em democracias iliberais, constantemente focados em inimigos reais ou imaginários e uma gestão da escassez a um nível suficiente para garantir países a funcionar em níveis mínimos, sem contestação política e apenas focados em gerir o dia seguinte. Para atingir este objectivo, a China utilizou não apenas as ferramentas de guerra cibernética desenvolvidas pela Rússia, como a manipulação da opinião pública através de mecanismos humanos e robóticos nas redes sociais, mas também outro tipo de ferramentas bem mais poderosas e com retorno directo financeiro, como o estabelecimento dos acordos de geminação entre cidades chinesas e cidades dos países alvo, corrupção pura e simples de elementos governamentais, aquisição de órgãos de comunicação social locais e, principalmente, a iniciativa Uma Faixa, Uma Rota, que a coberto de investimentos de biliões de remnimbi mais não foi que um mecanismo para financiar projectos chineses em países estrangeiros com dívida externa desses países, sendo que em troca de infraestruturas, esses países adquiriram tecnologia e mão de obra chinesas. Para além de comprar dívida, a China deixou também toda uma infraestrutura tecnológica que lhe permitiu estender o seu sistema nacional de escuta e recolha de informação a todo o mundo.
Durante todo este processo a China observou a regressão de todo o planeta a níveis económicos e de conhecimento do início do século XX. E isto de uma forma bem mais eficiente que os EUA durante o século XX, uma vez que não dependeu da extensão de um sistema militar aos quatro cantos do mundo. Isto porque, no fundo, a China nunca teve a pretensão de impor o seu sistema político aos restantes países, mas apenas salvaguardá-lo a nível nacional e impedir eventuais ameaças externas que pudessem diminuir o controlo férreo sobre a sua população. De resto a China soube manter uma posição neutra no resto do planeta, estendendo o seu poder através de delicados filamentos que com recurso a pequenos mas eficazes empurrões, foi mantendo os seus interesses acautelados. Adicionalmente, o que constituiu uma ironia histórica de proporções épicas, conseguiu manter o controlo sobre toda a propriedade intelectual por si produzida, sendo que toda a infraestrutura tecnológica fora da China passou a ser controlada remota ou localmente por técnicos chineses, o que contribuiu fortemente para o culminar do estabelecimento da China como única potência hegemónica mundial, sem qualquer rival com a capacidade, ainda que remota, de representar uma ameaça para os seus interesses.
A Moda como Ponto de Entrada
E foi neste quadro em que quase todo o planeta havia regredido quase dois séculos em tecnologia e conhecimento, que a Humanidade teve o seu primeiro contacto com uma civilização de outro sistema solar. Os mais pessimistas amantes de ficção científica sempre haviam defendido e argumentado que as intenções de uma civilização extraterrestre que contactasse a Terra nunca poderiam ser benévolas. O racional teórico para esta posição era relativamente simples: uma civilização extraterrestre com a capacidade para viajar até à Terra, partindo de um ponto que nunca poderia ser mais próximo que quatro anos-luz, teria de ser detentora de uma tecnologia vastamente superior à dos humanos. Uma civilização benevolente, com sentido de responsabilidade e que integrasse valores morais e civilizacionais que a impedissem de prejudicar terceiros e que detivesse tal tecnologia, jamais entraria em contacto com outra que se encontrasse num estágio de tal forma inferior que o potencial salto tecnológico pudesse representar um perigo existencial. A análise da História da Humanidade demonstra este ponto até à exaustão e o contacto com esta civilização extraterrestre confirmou que a teoria era uma realidade verdadeiramente universal. Os extraterrestres não eram de facto benevolentes. O seu único objectivo era a eliminação completa da Humanidade para exploração dos recursos do seu planeta. Mas tal como os chineses, esta civilização, que viria a ser apelidada pelos humanos de
Vrenhec[
1], não planeava a curto prazo. Isto permitiu-lhes compreender todos os mecanismos utilizados pelos chineses para manterem a situação política mundial dentro de certos parâmetros, o que lhes viria a ser muito útil nas fases posteriores da invasão. Apesar de o objectivo último, a que os extraterrestres chamaram de "Solução Final", num assomo claro de humor negro e desprezo pela população humana, ser a eliminação de todo o espécime humano, com base noutras experiências de captura de planetas tinha sido estabelecido que uma abordagem inicial de força bruta acabava por ser contraproducente uma vez que levava a um entrincheiramento das forças defensivas e, consequente, a um longo período de guerra de contrainsurgência. Assim, seguindo uma estratégia em constante melhoria, o estado da arte em termos de conquista de civilizações subdesenvolvidas estava assente em várias fases em que a primeira consistia na infiltração dos corpos governamentais através de agentes locais, próximos do poder, mas que pudessem estabelecer-se como ponto de contacto sem darem nas vistas. Em cada planeta este grupo de pessoas variava, uma vez que dependia de encontrar alguma afinidade cultural entre os Vrenhec e a população local. No caso da Terra, esse grupo foram os estilistas de moda. Isto porque, por alguma coincidência do destino, os Vrenhec tinham uma capacidade inaudita para combinarem cores com uma tal perfeição que a mensagem dos Vrenhec se apresentava irresistível a uma pessoa que tivesse algum tipo de sensibilidade estilística. Desta forma, numa primeira abordagem estas pessoas eram raptadas, mas em vez de serem submetidas ao cliché das torturas com sondas enfiadas em diversos orifícios corporais, era-lhes feito uma visita guiada às zonas de lazer das naves, em crescendo de qualidade artística, culminando num desfile de moda com um tal nível de qualidade que os estilistas ficavam convencidos, para além de qualquer dívida razoável, da superioridade dos Vrenhec e da inutilidade da resistência da espécie humana. A partir desse ponto, mais do que rendidos, os estilistas passavam a almejar pertencer à não-existente comunidade intergaláctica dos Vrenhec. E foi assim que começou a conquista da Terra pelos Vrenhec e que durou até à extinção do último ser humano. Paz à nossa memória.